terça-feira, 30 de agosto de 2011

Fardo tão grande para alçar-te
O ardor de Sísifo não sobra
por mais que nos lançemos à Obra
A arte é longa e o tempo é breve

Baudelaire, As flores do mal

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

É tua impessoalidade
Por qual não razão figura-te por ela? Impessoalidade pela simples ode ao não contato? Ou pelo louvor à apreciação alheia disto?
Não me tocas
É a tua face, é o que queres me mostrar - o teu bom grado?
Não me tocas
Ao encontro, tocaste-me pelo difícil
Tocaste-me pelo incomum, sobra em mim o gosto por descobrir tuas entrelinhas
mas tens medo de mostrar-me teu simples
é pelo simples que me arrebataria
só posso alcançar as tuas linhas, pontos
não sinto tua saliva de frases não pensadas, de frases faladas e vomitadas
existe outra face em ti?
eu a vi, antes de colocá-la em um cavalo alado
que tem medo de me encontrar
Mas, não, não me tocas
e não queres me tocar
Sinto muito.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.
Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.
E pensas maravilha quando pensas anca
Quando pensas virilha pensas gozo.
Mas tudo mais falece quando pensas tardança
E te despedes.
E quando pensas breve
Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano
Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.
E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas
Luta, ascese, e as mós do tempo vão triturando
Tua esmaltada garganta... Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.

Hilda Hist

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Caso pluvioso

A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que Maria é que chovia.
A chuva era Maria. E cada pingo
de Maria ensopava o meu domingo.

E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.
Eu era todo barro, sem verdura...
Maria, chuvosíssima criatura!

Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.
Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!

Não me chovas, Maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.
Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia em vão - pois que Maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.
E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.
Chuvadeira Maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

Eu lhe gritava: Pára! e ela chovendo,
poças dágua gelada ia tecendo.
Choveu tanto Maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa

e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.
E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de Maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,
e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.

Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando
contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).

Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas dágua mais deliram,
e Maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,
e Maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,

e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,
e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, Maria! - e ela parou.

Carlos Drummond de Andrade

Voz de Paulo Autran

sábado, 6 de agosto de 2011

Minifesto (Paulo Leminski)
ave a raiva desta noite
a baita lasca fúria abrupta
louca besta vaca solta
ruiva luz que contra o dia
tanto e tarde madrugastes

morra a calma desta tarde
morra em ouro
enfim, mais seda
a morte, essa fraude,
quando próspera

viva e morra sobretudo
este dia, metal vil,
surdo, cego e mudo,
nele tudo foi e, se ser foi tudo,
já nem tudo nem sei
se vai saber a primavera
ou se um dia saberei
que nem eu saber nem ser nem era

[do livro Distraídos Venceremos]

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Escuto de longe teu grito. O que queres? Não entendo. Não perco o disperso ruído, acompanhado de um lento cantarolar... Podes me dar teus assobios, eu os quero como veludo em meu pescoço. Sei o que queres, jogastes sempre. Finjo não saber, ou sei muito bem meu fingir saber. Gritas, esperneias, choras. Alguém! Vem de ti? Não, não digas... silencia tuas cordas vocais para as palavras, e só me assobie. Sinto isto nas palmas de minhas riscadas mãos.
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.


Manuel de Barros

Monologamente egoísta

Só eu tenho o pleno e belo desconhecimento do trânsito e da sinalização sem lógica alguma que se passam aqui por dentro, na caixa oval de ossos - e por fora também, não me excluo. Desconheço-me completamente. De nada mais posso escrever a não ser de mim e dos meus perdidos pensamentos, que entram por quaisquer lugar, sem ordem alguma. Por isso, eu sou os outros. E outros são o que escrevo - dialogicamente os sou de cada um uma milimetragem. Quem fala aqui sou eu, pura cultura repetida, totalmente hormonal. Normalmente é um prazer conhecer novos outros-eus, mas digo que pretendo dosar a empatia inicialmente. Só estou sendo, como dizem, um pouco racional, mesmo sem saber do que diabos isto se trata.

Viajante desconhecido, faz-me assumir que sim

Eu me entrego, na ânsia de querer acertar, eu imito a razão. E minto. Não sei, apesar de guardar esse caça-palavras para quando o corpo estiver cansado e os pensamentos continuarem velozes e sensivelmente astutos, realmente não sei se há e qual é o limiar entre razão e emoção. Há? Sim, eu sei que vai me dizer: - Ainda pensa nisso, mulher? Penso. E por isso me entrego: o meu racional é tão emocional. Eu me entrego dizendo que eu sempre me entrego - não sou boa em calcular ganhos e danos. Sinto-me tão viril, meu corpo só pede poesia - ora com cuidados minuciosos de outro toque, ora com versos sem ensaio, com suor, saliva, vontade. Sinto-me dizer, pois só a mim posso justificar, mas eu sempre me entrego.